PT EN

AH, EU AMO AS MULHERES BRASILEIRAS!

Bastam os primeiros versos da famosa canção para que se desenhe a cena: em uma praia de areias claras, uma mulher estonteante desfila seu doce balanço a caminho do mar. Embora Garota de Ipanema não tenha instituído o clichê da mulher brasileira, seu sucesso ajudou a difundir certa imagem do Brasil. As 33 obras exibidas nesta terceira edição* de Ah, eu amo as mulheres brasileiras! estão divididas em quatro núcleos e pretendem desafiar esse lugar-comum ao trazer o inevitável ponto de vista das artistas, abrindo uma porta para as múltiplas realidades de um país tão vasto.

 

A origem do estereótipo da mulher brasileira sensual remonta ao atroz processo de colonização que, sob o pretexto da “civilização”, fez desumanizar indígenas e classificá-los como hipersexualizados e selvagens. A filósofa Sueli Carneiro afirma que a violência sexual colonial é “o ‘cimento’ de todas as hierarquias de gênero e raça” em nossa sociedade, pensamento que marca o ponto de partida do núcleo “De Iracema a Garota de Ipanema” ao abordar um denominador comum entre mulheres: a construção desse estereótipo e a busca por uma identidade – ou várias.

 

Diante da importância do espaço arquitetônico onde estamos e da deslumbrante natureza que o cerca, esse núcleo traz ainda outra camada da objetificação da mulher: a tradição lírica a partir de um cânone masculino que equipara a mulher às formas naturais ou inventadas pelo gênio humano, desprezando a conexão primordial entre o feminino e a natureza.

 

Pouco tempo após a chegada dos europeus, teve início a maior operação de tráfico humano das Américas: entre os séculos XVI e XIX, quatro milhões de africanas e africanos foram brutalmente escravizados no Brasil. As mulheres africanas e suas descendentes brasileiras foram – e são – vítimas dessa violência de forma particular. A verdade é que, se somos uma sociedade misturada, isso decorreu do estupro de mulheres negras por uma elite branca dominante. A violência está na gênese da imagem atribuída à mulher brasileira, mas é também sua pior consequência: o Brasil está entre os países que mais estupram e matam mulheres. Diferentes formas de violência, tais como racismo, etarismo e transfobia são o assunto do núcleo “Violências e violações”.

 

Diante deste cenário nefasto, é natural que voltemos nosso olhar e esperança para a arte. Ao conter a visão e o pensamento do aqui e do agora, o núcleo “Novas estéticas em construção” fornece um cenário ligeiramente mais positivo, com obras realizadas por artistas comprometidas com o espírito de seu tempo e que colocam em prática a subversão dos papéis, desafiando as imagens de controle criadas por um sujeito (nesse caso, masculino e eurocêntrico) que domina a narrativa sobre determinados corpos e ainda responsabiliza as vítimas por isso.

 

A internet, por sua vez, é um campo aberto para a disseminação de tais imagens, na medida em que também enseja novas representações: as redes sociais são, para quem se aventura a enfrentar os haters e a censura, uma oportunidade de romper com as tradicionais figuras das capas de revistas. Entretanto, até algoritmos reproduzem imagens de controle e estamos, neste exato momento, tentando entender se a inteligência artificial será, enfim, nossa inimiga ou nossa aliada.

 

O último núcleo, “Afeto e transgressão”, é uma aposta na afetividade como forma de resistência às normas sociais estabelecidas, desafiando a noção de que emoções sejam experiências internas individuais e incorporando a elas a influência das estruturas culturais. Algumas obras desse núcleo revelam momentos de intimidade – situações normalmente relegadas à vida privada – mas que, aqui, são colocadas sob o holofote do debate público de forma que as emoções não sejam associadas ao binômio fragilidade/mulher em oposição ao de força/homem. Por fim, as iniciativas expostas neste núcleo mostram ações propositivas que agem no âmbito do cuidado e da promoção de políticas públicas ou privadas para mulheres.

 

Por meio da reunião dessas 22 artistas, Ah, eu amo as mulheres brasileiras! busca oferecer outra perspectiva sobre as diversas experiências e identidades das mulheres brasileiras. O título da exposição (emprestado da obra “Brazil”, de Santarosa Barreto) reivindica agência ao se apropriar da frase ouvida à exaustão por mulheres brasileiras fora do país e atribuir a ela um novo sentido. Aí está a essência deste debate, que exige um tom, ao mesmo tempo, assertivo e afetuoso, justamente porque, se aliado à luta, o afeto pode representar um possível passo no sentido dessa liberdade, uma chama que nós – e apenas nós – mesmas carregamos.

* a primeira edição desta exposição foi selecionada no open call da apexart, em Nova York, onde esteve em cartaz de janeiro a março de 2022; já a segunda montagem esteve no Centro Cultural São Paulo de julho a agosto de 2023.