Bastam os primeiros acordes da famosa canção para que se desenhe a cena: em uma praia de areias claras, uma mulher estonteante desfila seu doce balanço, a caminho do mar. Embora Garota de Ipanema não tenha instituído o clichê da mulher brasileira, seu sucesso ajudou a difundir determinada imagem do Brasil. A expectativa sobre a sensualidade da mulher brasileira varia, rapidamente, de instigante a reprovável de acordo com a mulher e com o interesse do interlocutor. As doze obras reunidas nesta exposição desafiam este estereótipo e abrem uma porta para a multiplicidade de realidades vividas em um país vasto como o Brasil.
A fantasia do Brasil como país cujo território e cujas mulheres podem ser explorados foi impulsionada por propagandas incentivando o turismo durante a segunda metade do século XX e por falas como a do presidente Jair Bolsonaro em 2019 (“quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”). Esta ideia reitera um brutal processo de colonização. A objetificação e o apagamento das populações indígenas não são exclusivos do Brasil, mas deixou ali marcas indeléveis: séculos depois, indígenas seguem lutando pelo direito à terra. A obra Indiogente, Indigente, Indigen-a-te de Arissana Pataxó joga luz sobre um processo de colonização que, sob o pretexto da “civilização”, fez desumanizar indígenas e classificá-los como hipersexualizados e selvagens. A filósofa brasileira Sueli Carneiro resume o impacto deste período na formação do Brasil afirmando que a violência sexual colonial é “o ‘cimento’ de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades”2.
Pouco tempo após a chegada dos europeus e a subsequente dizimação dos povos indígenas, teve início a maior operação de tráfico humano das Américas: entre os séculos XVI e XIX, quase cinco milhões de africanos foram extirpados de sua terra para serem comercializados, escravizados e brutalmente agredidos. As mulheres africanas e suas descendentes brasileiras foram – e são – vítimas desta violência de forma particular. Há um grande esforço para fazer crer que os horrores sucedidos entre Casa Grande e Senzala tivessem resultado na “democracia racial”, o mito de que a população miscigenada seria fruto de relacionamentos inter-raciais consentidos. Assim, a convivência entre brancos, pretos e mestiços no Brasil seria harmoniosa e o racismo, não praticado. A verdade é que, se somos uma sociedade misturada, isto decorreu do estupro de mulheres negras por uma elite branca dominante.
Existe, até hoje no país, um projeto de embranquecimento da população e genocídio de negros, exemplificado no avanço do HIV sobretudo entre este grupo. Em sua performance Cura, Micaela Cyrino trata do preconceito e da busca pela cura, não apenas para a doença causada pelo vírus, mas para o estigma e o fato, negligenciado pelo Estado, de que a população negra é a que mais morre de doenças relacionadas à AIDS.
Há ainda muitas outras instâncias de sofrimento para mulheres negras no Brasil em relação a estereótipos que decorrem diretamente do processo de escravização. Por exemplo, o abominável conceito de “mulata tipo exportação”, presente tanto no imaginário gringo como no endêmico. Ao revelarem seus corpos, sobretudo por meio da dança em eventos como o Carnaval, mulheres negras são apresentadas “não só como objetos sexuais mas como provas concretas da ‘democracia racial’ brasileira”3. A obra de Brenda Nicole, Volume 7, traz uma personagem dançando ao som do funk e do punk com palavras – algumas obscenas – ao fundo. Uma das muitas discussões emergentes das letras e dança com teor sexual refere-se à misoginia: afinal, expressões culturais como o carnaval e o funk liberam as mulheres para que se expressem da forma como quiserem ou objetificam seu corpo?
NATUREZA DOMINADA
Se estes dois episódios traumáticos – colonização e escravidão – forjaram o estereótipo da mulher brasileira sensual e promíscua, ilustram também a noção marxista de História como o processo de objetificação ou domínio da natureza. A relação das mulheres com o processo reprodutivo (e sua exclusão do processo produtivo) fez com que fôssemos reconhecidas – e perseguidas – pela ligação singular com a magia e a natureza, algo “fundamental para a objetificação e a conquista das mulheres pelos homens”4. Esta reflexão está presente no Alfabeto Cibernético de Fernanda Sternieri, em que a artista se debruça sobre quem éramos antes da linguagem e, portanto, antes da objetificação. Suas tapeçarias aludem aos ofícios têxteis, tradicionalmente femininos. Em uma inversão contemporânea, o vocabulário cibernético lembra grunhidos, como “kkkkk” expressando o riso.
Evidentemente, o fenômeno de objetificação não é exclusivo do Brasil. A culpabilização da mulher, responsável por todos os males, já aparece em Eva e sua maçã. A instalação W97M/MELISSA, de Vitória Cribb, nos transporta aos anos 1990, quando contas de e-mail pertenciam, majoritariamente, a homens brancos – altos executivos -, alvos fáceis para Melissa, vírus de computador disfarçado de stripper que, trazendo uma mensagem sugestiva, espalhou-se facilmente ao instigar os homens. Melissa é uma Pandora do mundo digital, prova de que o avatar da mulher lasciva e calculista segue sendo reproduzido.
IMAGENS DE CONTROLE
Uma das chaves para compreendermos a concretização do estereótipo da mulher brasileira está no conceito de “imagens de controle”, desenvolvido pela socióloga estadunidense Patricia Hill Collins mais especificamente em relação às mulheres negras – embora afirme que as latinas também estejam sujeitas, em menor escala. Dado que a autoridade para definir valores sociais é uma importante ferramenta de poder, é frequente que estereótipos tenham como objetivo a manutenção do controle e da opressão. Ao objetificar, os homens imediatamente colocam-se como sujeitos enquanto as mulheres tornam-se o Outro (para Simone de Beauvoir, o “segundo sexo”). Neste caso específico, o sujeito, nitidamente masculino e eurocêntrico, cria um estereótipo objetificado que lhe permite controlar a narrativa acerca de determinados corpos e responsabilizar as vítimas: se a mulher brasileira é sensual, presume-se que seu corpo está disponível. Logo, de acordo com esta lógica falaciosa, o fato de ser violentada é culpa dela. A mulher brasileira negra, relegada aos papeis ora de “mulata tipo exportação”, ora de “empregada doméstica”, é objeto de tripla discriminação, como lembra Lélia González.
A identidade nacional pode ser frágil em países onde houve colonização, o que favorece a solidificação da imagem de controle. Grande parte da população desconhece sua ancestralidade: poucas mulheres negras têm informação sobre seus antepassados; as mulheres brancas costumam mencionar sua ascendência europeia, mas nunca são recebidas como tal na Europa. A brasileira, no geral, tem dificuldade de identificar-se como latina – possivelmente por não compartilhar a língua espanhola com a imensa maioria de seus vizinhos. A obra de Lenora de Barros, Procuro-me / Procura-se (Wanted / Wanted By Myself) versa sobre a permanente busca por uma identidade ou validação a partir do olhar externo. Na performance The Water Fountain, June Canedo, brasileira radicada nos EUA há mais de vinte anos, responde à perda de identidade após eventos traumáticos como assédio sexual, um lar violento e as agruras da imigração. A performance traz à tona o esgotamento imposto por estas situações.
Se a violência está na gênese da imagem atribuída à mulher brasileira, ela também se coloca como sua pior consequência. O Brasil está entre os países que mais estupra e mata mulheres; o cenário macabro onde isso frequentemente ocorre é a própria casa. Os sapatos vermelhos presos por uma corrente onde lemos “fica em casa” – frase proferida à exaustão na fase de isolamento pela pandemia de Covid-19 – compõem There’s no place like home, de Camilla D’Anunziata. Durante esse período, aumentaram os atendimentos por violência doméstica no país. Para muitas mulheres, o lar não é um porto seguro.
Se a casa não garante segurança, tampouco a rua traz proteção. A população LGBTQIA+ é extremamente vulnerável. Mulheres lésbicas sofrem duplamente com a violência e a fetichização de sua sexualidade. Na performance Cadê minhas irmãs?, Benedita Arcoverde reage ao hediondo dado que mostra o Brasil como o país que mais mata pessoas transgênero em números absolutos, embora figure também como o que mais busca vídeos pornográficos com temática transexual, evidenciando a relação íntima entre objetificação do corpo e violência.
A conjuntura das mulheres brasileiras fora do país não é melhor: a fotografia digital Our Bodies, Ourselves nasceu da indignação de Juliana Manara diante da estatística que mostra que quatro em cada cinco mulheres brasileiras morando em Londres sofreram violência doméstica. Controlar o corpo e a narrativa da mulher é uma forma eficaz de manter sua opressão. Não à toa, a frase “eu amo as mulheres brasileiras” é recebida de forma incômoda por muitas de nós, algo ratificado na escultura em neon Brazil, de Santarosa Barreto. Embora aparentemente afetuosa, esta afirmação está imbuída de preconceito e corrobora com o conceito de Hills Collins sobre imagens de controle.
A internet é um campo aberto para a disseminação de tais imagens, à medida que também enseja novas representações: as redes sociais são, para quem se aventura a enfrentar os haters e a censura, uma oportunidade de romper com as tradicionais figuras das capas de revistas. Milena Paulina fotografou dezenas de mulheres gordas que desafiam o padrão da nudez erotizada. O Grito é a criação de uma nova identidade contemplando uma gama de pessoas que nunca se viram refletidas no ideal estético. Entretanto, até algoritmos reproduzem imagens de controle: a conta da artista no Instagram é rotineiramente censurada.
Por meio da reunião de doze obras, Oh, I Love Brazilian Women! oferece outra perspectiva sobre as diversas experiências e identidades das mulheres brasileiras. Com otimismo, este conjunto de trabalhos pode representar um passo no sentido da liberdade, uma chama que nós – e apenas nós – mesmas carregamos.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 313.